Gente das Areias - Capítulo 3

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3 Quinze dias com Henrique
O período que passei em Maricá, no inverno de 1978, viria a ser o primeiro de uma série que, com eventuais interrupções, cobriu, aproximadamente, uma década de trabalho-de-campo.
Apesar da repetição dos encontros, que variaram quanto ao ritmo e à intensidade, este primeiro continua sendo, ainda hoje, aquele do qual conservo a memória mais nítida e a mais indelével das impressões. Vejo-o, neste sentido, como o encontro etnográfico por excelência. Não apenas quando o considero em contraste com o contato de 1975, mas também porque detecto nele, de forma extraordinariamente densa, todas as características que permitem qualificá-lo como tal. Quanto ao primeiro ponto, isto é, à distinção entre o encontro político e o encontro etnográfico, convém rememorá-los, em suas linhas de fôrça:
1975
a) Em função do trabalho que exercia na época, fui levado, juntamente com outros, a tomar conhecimento de um drama, que se desenrolava, então, no entorno das lagoas de Maricá;
b) nas margens destas, encontramos enormes quantidades de peixes mortos, em estado de putrefação, tendo perdido, pois, sua qualidade característica de pescado (fresco);
c) a impossibilidade de exercer seu ofício, dada a situação, levou os pescadores a se aglutinarem em diversos locais, no perímetro das lagoas, independentes de sua pertinência a este ou àquele povoado;
d) em cada uma dessas reuniões, eram debatidos três temas inextricavelmente relacionados uns aos outros - a lagoa; a barra e a estrada (esta, associada à “Companhia”, entidade que só compreenderia mais tarde);

1978
a) Em função de um projeto de pesquisa, fui colher, em Maricá, elementos para uma etnografia da pesca, na Região dos Lagos;
b) no mercado Municipal, junto às bancas de peixe fresco, encontrei um pescador, que, com seus sessenta e oito anos de idade, passava por um expert no ofício: “seu” Henrique;
c) nesse rancho, todas as conversas e discussões, das quais participavam, também, outros membros desse mesmo assentamento, giravam em torno de quatro temas fundamentais - a lagoa; a barra; a casa e a estrada (a “Companhia”).
Os dois encontros tiveram, pois, como origem o meu trabalho. Uma vez como agente de um programa de governo, a outra como pesquisador. Essa mudança de posição levou a distintas identidades no campo. O primeiro encontro ocorreu entre um funcionário público e um pescador genérico. Nessa relação vemos, de um lado o poder, do outro a carência. O segundo encontro pôs, face a face, um pesquisador e um conhecedor, invertendo-se as posições relativas do poder e da carência. Esta última estava, agora, do meu lado. Era eu quem precisava das informações que outro, um pescador específico, detinha. A este cabia, portanto, decidir sobre a partilha de seu saber. Essa inversão, de um encontro para o outro, parece significativa. No primeiro, nem a carência pôde ser resolvida pelo poder, nem este, na sua vertente técnico-burocrática, foi capaz de alcançar suas demandas implícitas. Nosso esforço de levar a ação governamental a pautar-se pelas manifestações explícitas do saber dos pescadores, teve conseqüências desastrosas. Desastrosas, mas certamente não imprevisíveis. A razão técnica é monológica e legiferante. Pouco lhe interessa o que os demais envolvidos possam pensar do problema que intenta resolver. E, de acordo com sua perspectiva, o problema de Maricá era simples e passível de uma solução igualmente simples - uma lagoa estagnada, onde os peixes morrem porque a água não se renova, precisa abrir-se por meio de um sangradouro. Para fazê-lo não era preciso mais do que uma escavadeira. Levar em conta uma multiplicidade de aspectos técnico-naturalísticos e sociológicos, considerados relevantes pelos pescadores para uma
abertura de barra, significava complicar a intervenção em nome de um conhecimento desqualificado por “empírico”, “tradicional”, “impreciso” e “supersticioso”. E, assim fazendo, prolongava-se o escândalo dos peixes apodrecidos, do mau cheiro e da possível contaminação das águas, com grave prejuízo para o turismo e, através dele, para a política e as finanças locais. Nosso erro, nesse contexto, foi a tentativa de instaurar uma relação dialógica, incorporando os argumentos dos diferentes sujeitos políticos, para, a partir deles, chegar a uma pauta convincente de soluções e intervenções. Neste sentido, o equivoco fundamental era agir como se o Pescart não fôsse um aparelho de estado e sim uma instituição de pesquisa.19 O problema estava na ambiguidade do orgão, que envolvia quadros acadêmicos, tendo mesmo financiado pesquisas de alguns dentre eles.20 Nossa “ingenuidade” levou-nos a extrapolar o âmbito que a ação governamental nos havia destinado. O problema da lagoa era da alçada dos engenheiros, o nosso era “evitar possíveis tumultos”, distribuindo víveres! Disso tudo resultou, no entanto, um fato positivo. O aspecto dramático dos acontecimentos, acentuados pela farsa da abertura-da-barra, serviram para dar ao meu projeto de 1978 um foco e um campo de questões definido. Ao chegar em Zacarias, cerca de três anos depois, estava sozinho. Embora portador de um vínculo com a esfera governamental, minha identidade ficou sendo a de professor.
Apesar de suas virtualidades favoráveis, esta não conseguiu poupar-me, inteiramente, de uma certa desconfiança reinante no povoado. O fato de ser hóspede de “seu” Henrique, entretanto, contornou essa dificuldade, em pouco tempo. Através dele o mundo genérico da pesca lagunar encarnou-se num assentamento distinto, onde os pescadores passaram a ter nomes, fisionomias, temperamentos e histórias, igualmente distintos. Ainda que provisoriamente, Zacarias tornava-se minha morada, dando-me, não só uma inserção na realidade cotidiana de uma aldeia de pescadores, mas também um ponto de

19 Como avisadamente observara o professor Luis de Castro Faria, convidado a ministrar, juntamente com os professores Otávio A. Velho, Edson de Oliveira Nunes, Wagner Neves Rocha, entre outros, o curso de treinamento dos técnicos recém admitidos pelo Programa de Assistência à Pesca Artesanal.
20 Como por exemplo, a de Túlio Persio Maranhão, da qual resultou sua dissertação de Mestrado(Maranhão, 1975).

vista dentro do sistema, diverso daquele eventualmente proporcionado por Barra de Maricá, Guaratiba ou Ponta Negra, por exemplo 21. Como pesquisador não podia desejar sorte melhor do que a proporcionada pela hospitalidade de Henrique. À maneira dos antropólogos fui, no início, um hóspede auto-convidado, desses que se insinuam com a intenção de achar um pouso e ir ficando. Isso, no entanto, só foi possível porque Henrique se dispôs a atender minhas expectativas, convidando-me a permanecer no rancho. Sua hospitalidade ofereceu-me não só um abrigo, comida e bebida, mas, ainda, aquilo de que mais carecia - uma paciente e autorizada socialização no universo onde pretendia desenvolver a pesquisa. E, neste sentido, nenhum antropólogo poderia desejar um interlocutor mais qualificado. Henrique era um dos mais velhos e prestigiosos pescadores de Zacarias. Tinha uma memória prodigiosa, uma trajetória profissional exemplar, uma vivacidade intelectual extraordinária, a serviço da qual mobilizava seus notáveis dons de observador e narrador, que combinava com apurado senso pedagógico. Sua virtude como informante, porém, não derivava, apenas, de suas características pessoais. Sua peculiar inserção social era igualmente importante, neste caso. Graças ao fato de não ter filhos, ter deixado de pescar e viver no rancho, em decorrência do seu curioso arranjo matrimonial com Brígida, “Poeira” tinha, na Zacarias, uma posição excêntrica, que lhe dava uma percepção mais aguçada e crítica do povoado, apesar de seus vínculos morais e afetivos com o mesmo. Assim, cumpre-me reconhecer que, neste primeiro encontro etnográfico, Zacariasse transformou para mim num ponto de vista, em grande parte através dos olhos e das palavras de Henrique. Foi sua maneira de considerar as coisas e de as formular, num constante e variado fluxo narrativo, que fez desses quinze dias passados no rancho, uma experiência radical e propriamente etnográfica. Com efeito, nunca deixei de me surpreender com a reiterada constatação de que, no campo, tudo para o que minha atenção se voltaria nos anos subsequentes, alguma vez já havia sido abordado durante essa primeira estadia. Ao consultar hoje o resultado dessa incursão etnográfica 22, entretanto, não só ressurge a pletora dos conteúdos, mas, junto com ela, um certo modo de tratá-los. Henrique falava


21 São estes, outros povoados pesqueiros da lagoa, do lado da restinga. Do lado oposto, "na terra firme", havia ainda outros, como São José do Imbassaí, Araçatiba, Saco das Flores, Saco da Lama, etc.
22 “A técnica e o folclore dos pescadores do Estado do Rio de Janeiro” (Mello e Rodrigues, 1978).

das coisas desse seu mundo com encantamento. Suas descrições eram tão vivazes quanto exaustivas. O fato de estarem motivadas por um interesse prático, no entanto, jamais tornava enfadonha a abordagem. Como todos os narradores natos, imprimia aos temas essa tonalidade épica que marca a tradição oral. Graças a ela, apresentava cada fenômeno, ou incidente, como uma peça exemplar desse mundo, misturando orientações práticas, artifícios cognitivos, normas de vida e lições de moral. Dessa perspectiva, não posso senão descrever a natureza do seu discurso, recorrendo às palavras de Walter Benjamin, quando afirma: “A narrativa, da maneira como prospera longamente no círculo do trabalho artesanal - agrícola, marítimo e depois urbano - é ela própria algo parecido a uma forma artesanal de comunicação”23. E, com isso, não me refiro apenas à sua construção peculiar, mas, para além dela, à extensa gama de práticas que tendem a acompanhá-la, envolvendo tanto o narrador quanto o seu ouvinte. Escutei as histórias de Henrique enquanto este desempenhava as mais diversas tarefas, nas quais cuidava, por decisão própria ou a convite, de secundá-lo. Assim, participei do tratamento das redes; da coleta e preparação dos materiais para esse fim; do aparelhamento e reparo das canoas; e do manuseio, conserto e acondicionamento de todo tipo de itens da pescaria, até que, finalmente, estivesse apto para embarcar, como “companheiro” de Benjamin (“Beco”), sobrinho e arrendatário de uma das canoas do velho pescador. Além disso, acompanhei meu anfitrião nas suas costumeiras excursões à restinga, durante as quais o fio da narrativa prosseguia a propósito da multiplicidade de frutos, flôres, madeiras, raízes e de tudo em geral que merecesse alguma atenção pelo seu caráter útil, estético ou curioso, isto é, especulativo.Não eram, porém, apenas as tarefas manuais que suscitavam o comentário narrativo. Bastava uma circunstância. Certa noite, por exemplo, quando já estávamos acomodados para dormir, e o rancho às escuras, Henrique começou a dissertar sobre os ventos:“
Tá ouvindo o vento? Essa porta batendo na tramela? É um nortezinho caindo. É um vento fresquinho, quando dá de noite. É bom para o pescador, como também o Leste e o Nordeste. Já o Sudeste, não é muito bom. Quer dizer, é ruim para pescar de lanço, mas não para a rede de espera. Mas vento danado para o peixe é o Lé-Sueste. Esse vento esconde o peixe. Traz chuva e temporal. É um quarto de vento que depende da parte do mar. Tem uma porção de ‘quarto de vento’, como agente trata aqui... O Sudoeste traz chuva também. Agora, o Leste e o Nordeste só trazem trovoada e relâmpago, mas chuva não vem não. O Leste pertence ao mar mesmo; e o Norte pertence ao Norte mesmo; o Norte falado. O Nordeste, o Oeste e o Sudoeste, vem da parte de baixo, da terra firme, abrindo para o mar. O Noroeste, o ‘minuano’, cai por cima da Pedra de Inoã, é vento

23 Benjamin, 1980:62-63. Artesanal, inclusive, porque é concebida para cada ocasião e para cada auditório,sendo, pois, única, como qualquer peça da lavra do mestre-artesão.

brabo! Vento que não sabe ventar fraco. Mas é um vento antigo, e nós já estamos acostumados com ele. O Leste é manso e escurece a água. Manso para nós, aqui, atrás do combro. Lá fora é a ‘lestada’ - o ‘mata-poveiro’. Cansamos de acudir eles na costeira, quando dava a ‘lestada’... Aqui tem muita raça de vento!”
Dos ventos, Henrique passou, não me lembro mais como, para as luas, sempre associadas às marés. Acho que a conversa tinha derivado para os ciclos do ano, as estações:“
O sol varia, mas a Lua é o ano todo. Ela funciona assim: tres cheias, tres secas, tres enchendo e tres secando. No duro, ela não fica nem cheia, nem sêca. Ela fica doze horas fora e doze horas escondida. A Lua Nova a gente não vê,mas ela está trabalhando, só que é de dia. Ela continua - as 6:00 da manhã está seca; ao meio-dia está cheia, está à pino; às 6:00 da tarde está seca de novo, depois vem enchendo até a meia-noite”.
Esses excertos dão uma idéia aproximada do estilo que Henrique imprimia às suas dissertações. Funcionam, ainda, no sentido de ilustrar o elenco temático das nossas conversas. Este se organizava em torno de alguns centros gravitacionais. A lagoa e a pesca formavam um deles. Outro era constituído pela casa, isto é, pelo
parentesco, não apenas na sua dimensão atual, mas também na dimensão diacrônica da genealogia; uma e outra rebatidas no espaço da moradia e da aldeia. Dentro do campo estruturado em torno da pesca lagunar, surgiam diferentes subtemas, entre os quais é possível distinguir, numa hierarquia de recorrência e relevância. O camarão é, nesse particular, o grande subtema. Apresentava-se, invariavelmente, em conexão como glorioso passado pesqueiro de Maricá, “nos tempos da lagoa antiga”. Logo a seguir, na escala, parece-me situar-se a pesca-de-galho, ou “de parcé”, como preferia Henrique. Se a esta última faltava a complexidade sociológica da pesca do camarão, sobrava-lhe, no entanto, requinte, quando vista sob o ângulo da engenhosidade técnica e cosmológica. O camarão apontava não só para uma espécie de época de ouro da pesca, no Município, mas, também, para uma extensa e complexa rede de relações, envolvendo rivalidades, reciprocidades, trocas, maximização e complementaridade de atores sociais e de seus respectivos recursos. A pesca-de-galho remetia a uma igualmente complexa e, talvez, ainda mais intrincada rede de correspondências cosmográficas e cosmológicas. Os dois outros temas maiores eram a barra e a Companhia. Ambos tão recorrentes quanto polêmicos. Temas diretamente relacionados tanto à pesca lagunar, quanto ao tripé casa - parentesco - genealogia. Se a presença da Companhia era uma ameaça para a casa, a já longa ausência das aberturas de barra punha em risco a lagoa, e com ela a pesca. Desse modo, os dois últimos temas relacionavam-se com os dois primeiros, revelando-se, como eles, inseparáveis. A urbanização intentada pela Companhia, em vista do turismo, com sua estrada litorânea, etc., inviabilizava as barras. À falta dessa comunicação com o mar, a pescaria minguava, tornando-se incapaz de sustentar a casa. Esta, por sua vez, vitimada pelo processo de relocação praticado, estava fadada a afastar-se da lagoa ou a desaparecer; pondo em cheque a sobrevivência da família. Com isso, chego aos dois últimos grandes temas desse elenco. São na verdade duas histórias. As referências à cisão do povoado, em virtude da qual tinham passado a existir duas Zacarias - a “de cima” e a “de baixo”; a das “casas novas”, insidiosamente chamada de Vila dos Pescadores, distante dos portos da lagoa, e a das “casas antigas”, à beira do Lago Grande, olhando-o, por assim dizer. A primeira dessas histórias era a da Companhia; melhor dizendo, a de Lúcio Thomé Feteira, empresário e estrangeiro e relatava o episódio que, segundo os pescadores, constituíra, ao mesmo tempo, o ato fundador de um empreendimento, baseado na traição e na usurpação. Essa história trazia consigo, invariavelmente, uma segunda - a história de Juca Tomás. Também ele um empresário e pai fundador, só que numa versão positiva, pois era nativo e, mais que isso, pai (ou tio), avô (tio-avô), bisavô e tataravô dos nativos da Zacarias, personagem fundamental do clã dos Marins, fons et origo da família. O mundo de Henrique tinha acabado de sofrer uma redução drástica, quando o conheci. Em parte, essa limitação tinha-lhe sido imposta, em conseqüência do abandono da pescaria, ele mesmo determinado pela idade e pelas suas condições de saúde. Por outra parte, entretanto, era fruto de uma escolha, pois inúmeras vezes insisti em vão, para que juntos visitássemos a Lagoa Rodrígo de Freitas e seus arredores, no Rio; as lagoas de Piratininga e Itaipú, em Niterói; Saquarema e o outeiro de Nossa Senhora de Nazaré, com suas famosas festas da padroeira; a Serra do Espraiado, todos eles lugares onde o tinham levado sua atividade, seus relacionamentos e suas folganças, da juventude e da idade madura. No inverno de 1978, porém, esse universo restringia-se ao povoado e ao seu entorno imediato. Quando deixava o rancho, Henrique podia dirigir-se para a beirada da lagoa, a restinga ou a costeira. Ia sempre à casa de sua mulher, para apoiá-la em certos afazeres. Frequentava a birosca de “Ginho”, seu primo e cunhado, quando não ia ao armazém de Alcina, ao de Jessé ou, vez por outra, à birosca de “Tuguesa”. Podia ser visto na casa de Ari, seu sobrinho, atravessador de peixe do povoado, ou, mais adiante, no armazém de “Totonho”, na estrada do Boqueirão. O mais longe que ia era à Vila, isto é, ao núcleo urbano de Maricá, para passar no mercado de peixe, na feira e no banco, onde sacava os reduzidos proventos do seu Funrural 24. Fazia tudo a pé, empurrando um carrinho-de-mão, da sua própria lavra. No tempo seco, levantava o pó da estrada, o que lhe valeu o último de seus apelidos, o de “Poeira”. Apesar disso, não poderia dizer que seu mundo fosse pequeno. Henrique possuía informações atualizadas sobre o que se passava “lá fora”. Era uma pessoa interessada, que gostavade ouvir, comentar e passar adiante as notícias. Para inteirar-se dos eventos exteriores, frequentava o comércio de “Ginho”, ou permanecia à sombra do grande bapébuçu na porta de “Tuguesa”, ao cair da tarde, bebendo cachaça com cambuím e proseando com seus pares. Mas não era só isso que dava amplitude ao seu mundo. Era antes um modo de falar das coisas mais imediatas, isto é, daquelas que estavam ao alcance da vista, ou à distância de uma breve caminhada. Quando se detinha numa apreciação da lagoa ou das serras, da restinga ou domar, das águas lacustres, das florestas, ou do firmamento estrelado, sabia atribuir inusitada grandeza a tudo isso. Não só pela abrangência de sua visão, sempre atenta às totalidades, como também pela extraordinária multiplicidade de detalhes pertinentes que era capaz de entrelaçar, de maneira significativa, nos seus excursos. Finalmente, creio que não era estranho à essa impressão de magnitude, evocada por suas palavras, a emoção estética e o arsenal de metáforas que davam sustentação ao seu discurso. Para ele, o céu era mais do que um arranjo espacial de corpos celestes. Descrevia-o segundo uma semiologia poética, apontando entidades como o “Caminho do Céu” (a Via Láctea), a “Arca de Noé”, o “Poço do Céu” (um grande vazio na Via Láctea), e assim por diante. Da mesma forma a lagoa, isto é, o sistema lagunar como um todo, revelava-se, através de Henrique, em toda a sua riqueza e complexa diversidade. Ele dominava uma extensa toponímia de praias, portos, sacos , coroas, pontas, canais e pedras. Conhecia o fundo da lagoa, isto é, sabia, além das profundidades propriamente ditas, a configuração e a natureza das áreas submersas; se o chão era de lama, cascalho, areia; se era limpo ou sujo. Neste último caso, conhecia o tipo de vegetação do fundo, os “lixos”, como dizem os pescadores - lixo-roseta 25, lixo-capim 26,

24 Fundo de aposentadoria e pensão dos trabalhadores rurais, pois vinculara-se ao sindicato, no passado.
25 Chara
26É uma Naja dacea Ruppia maritima, L.

lixo-peteque 27, lixo-de-limo 28, lixo-de-algodão-verde 29, lixo-do-camarão 30 - “formando gigantescos canteiros sub-aquáticos” 31. De sua semiologia do Lago Grande, por exemplo, faziam parte, ainda, as pedras da Saputera (ou Taputera) e a Pedra Alta, além de duas pedras submersas, sem nome - “todas elas raiz lá do mar, filhas daquelas que tem no mar”. Isto sem falar nos “parcéis”, ou “lugares”, ou “galhos”, como também são chamados. E que são pesqueiros, várias dezenas deles - criados e localizados com base num processo de triangulação, que se vale de um extenso e variado sistema de pontos referenciais, identificáveis na linha do horizonte mais imediato (beirada da lagoa) ou mais distante (serras, falésias e cômoros da restinga), e aos quais se dá o nome de marcas.“Poeira” estava longe de ser um letrado, mas sabia ler e escrever. Diante da folhado caderno-de-campo que lhe apresentei, não se fez, porém, de rogado, e produziu, em pouco tempo, uma espécie de mapa das lagunas, num desenho acompanhado de muitas explicações, das quais fui plotando as que me pareciam mais importantes nesta primeira carta nativa das lagoas de Maricá. Quase tudo que fazíamos, e sobre o que conversávamos, tinha a ver com a pesca, nosso assunto predileto, graças a uma oportuna convergência de interesses, dessas sem as quais o trabalho-de-campo costuma transformar-se em uma tarefa penosa e, na maioria das vezes, de parcos sucessos. Não posso dizer que fosse um cotidiano de pescador, pois Henrique não pescava mais. Apesar disso, nosso dia-a-dia era, ainda, pautado pela atividade pesqueira, da qual meu anfitrião conservava todas as rotinas, com excessão da principal. E mesmo esta não estava de todo ausente, porque Henrique acompanhava, à distância, as pescarias alheias. Enquanto isso cuidávamos das canoas, quer para baixá-las, do rancho ou da praia, para a lagoa, quer para tirá-las desta, acomodando-as em um desses dois espaços. As canoas de Zacarias, sobretudo as mais antigas, cuja idade variava de 35 anos para mais de 50, eram de vinhático ou de cedro. Mas existiam algumas feitas de oiti, cica e bacurubú. Esta última, no entanto, era tida como madeira inferior, demasiado macia, “igual a cortiça”. Canoas de bacurubú eram, portanto, pouco duráveis, exigindo uma demão de tinta, de 3 em 3 meses, para não apodrecer.

27 Não me foi possível identificar.
28 São algas filamentosas Ulothiricaceae
29 É formado por uma cloroficea, "verde cobreada, muito berrante".
30 A Enteromorpha, "alga verde de tubinho, como um macarrão fino, conforme conhecem os pescadores".
31 A expressão é de Lejeune de Oliveira (1955:191). As identificações dos "lixos" encontram-se neste mesmo autor.

Ao cuidar do objeto, este se convertia no tópico principal da conversação. E, dessa maneira, iam se desdobrando todas as suas implicações. Aquelas referentes ao fabrico, por exemplo. Como nenhuma das madeiras próprias para a construção de canoas existisse na área dos baixos e da restinga, era necessário procurá-las nas serras (em Itapeba ou no Espraiado), ou mesmo em outros municípios (como Macaé), às vezes mais longe ainda, na Ilha Grande. Assim, quem precisasse de uma canoa tinha de contratar com um profissional, geralmente lavrador, o serviço de derrubada 32. No dia marcado pelo canoeiro, abatia-se a árvore escolhida, respeitando a fase da lua. O abate ocorria, obrigatoriamente, no quarto minguante, quando a madeira “está fechada”. A tarefa era árdua e, quando o trabalho familiar não era suficiente, lançava-se mão de ajutório, sobretudo para trazer o madeiro até o local onde seria preparado. Da habilidade do canoeiro, ao escavar o tronco com enxó e machado, dependia das qualidades da embarcação. Esta tinha de resultar estável. Ninguém gostava de “canoa bandoleira” (“que ginga muito”). Às vêzes, porém, não havia como evitar essa eventualidade, quando o tronco tem pouca largura, por exemplo. Neste caso, tornava-se necessário abrir o fundo da canoa, inserindo-se aí uma “bandoleira”, nome dado a um madeirame que, engastado “no meio”da embarcação, passava a servir-lhe de “tábua de fundo”. Era ponto de honra que essa emenda fosse executada com perfeição, tornando difícil, ao leigo, reconhecê-la. O “fundo da canoa” devia ser considerado bom quando o espigão era de cedro. O banco de proa costumava ser de “pinho sangrado”, que era “o pinho sem o breu” (“sem óleo”,“seco”). O banco do meio (ou contrameio) assentava-se, praticamente, sobre o “pré-pau da canoa”, sendo este um cavername forte, cuja função consistia em impedir os bordos de se “fechar”, pela ação da água e do sol. As ligas dos eventuais remendos eram feitas com
machetes, pequenas chapas de cobre, capazes de garantir-lhes firmeza e durabilidade. Essas canoas, mediam cerca de 7 metros de proa à popa, com 3 palmos de largura no meio. Eram impelidas por dois remos - o do
mestre (ou popeiro) e o do chumbereiro. Para eles deviam preferir-se certas madeiras como o louro (“lasca pouco com o sol”), o “louro cabureíba”(“tem o cerne forte”) 33, ou vinhático, cedro e jequitibá. Ainda a propósito da canoa, a conversa derivava para assuntos correlatos, determinados pelo ponto de vista que se adotasse a respeito dela. Como unidade de produção, colocava o problema da partilha. Antigamente, vigorava o sistema do quatro em um. A safra dividia-se em quatro partes iguais: duas para o

32 Em Itapeba era "Zinho" Oliveira que fazia canoas e remos.
33 Cabreúva do Campo, árvore da família, das leguminosas - papilionáceas

mestre, uma para o chumbereiro e uma “para a canoa”, isto é, para o dono da pescaria. Depois, passou a usar-se o três em um, onde cabiam partes iguais ao mestre, ao chumbereiro e à “canoa”. Como bem durável a canoa era passível de propriedade, sendo, nesta condição, indivisível. Podia transmitir-se por herança. A propósito, sucedia algo curioso. Henrique sustentava que “mulher não tem canoa”. Verificava-se, no entanto, que a canoa era invariavelmente associada a um grupo de irmãos uterinos, como meio de assegurar a subsistência de uma família. Como dispositivo fundamental da reprodução das unidades domésticas, por sua vez, a canoa surgia em estreito vínculo com as redes de pesca e as tarrafas. Estas, em contrapartida, eram, por excelência, fruto do trabalho doméstico, sobretudo das mulheres, associando-as, pois, ao empreendimento pesqueiro. No passado, as redes eram confeccionadas a partir de fibras vegetais 34. Assim, era preciso fiar, seja o algodão, seja o tucum, ambos adquiridos na feira, ou nos armazéns da Vila ou dos povoados da restinga. Eventualmente, esses produtos podiam ser obtidos através do escambo. Neste caso, o pescador levava aos portos da terra firme “um almoço de peixe”, trocando-o com os lavradores por um carregamento de banana, mandioca, guando, algodão e... tucúm. Para tecer as redes usavam-se moldes
de bambú, com vistas ao tamanho da malha, além de agulhas de diversos tamanhos, geralmente de  pitangueira ou batinga. Os moldes eram de um, dois, três ou quatro dedos 35, conforme a finalidade da rede e/ou a espécie a cuja captura se destinavam. O tamanho das agulhas variava de acordo, não só com o tamanho da malha, mas também com a espessura do fio, e ainda com a fase da confecção. De resto, estes objetos são, apesar de sua aparente simplicidade, complexos, na descrição nativa. Sua elegante forma oblonga compreende ponta, meio e pé. O meio é “como a tábua do fundo da canoa”. A parte dianteira do
corpo da agulha, se aguça num bico, bifurcando-se na direção do meio em torno de um vazio, no qual se projeta a lingueta. A parte, de trás se abre em dois, formando a bunda. O objeto inteiro é pensado como um símile reduzido da canoa, estendendo-se, como ela do bico da proa ao espelho da popa.Henrique comentava cada detalhe, quando, em diferentes momentos, se dedicava a consertar as redes de sua pescaria, quase sempre de madrugada, à luz incerta do candeeiro. Nessas oportunidades, não se contentava com demonstrar o funcionamento de cada item. Fazia questão de que eu tentasse imitá-lo, manuseando esses requisitos, para compreender as peculiaridades de sua operação. Desse modo, tive de aprender, ainda que precariamente, como se confeccionavam os

34 Nos tempos atuais, grande parte das redes e tarrafas é de nylon. O tucúm desapareceu de todo. Permanece a linha de algodão, necessária às pescarias de certas espécies, como o bagre, por exemplo.
35 Há, também, moldes ditos de um dedinho ou dois dedinhos, sendo subdivisões dos moldes de um e dois dedos, respectivamente. Com eles é tecida a malha mais fina das redes e tarrafas de camarão.

complementos para aparelhar e entralhar as redes. As boias, por exemplo, eram feitas com uma raiz que podia ser encontrada na restinga ou no brejo da lagoa - o ariticum, leve e fácil de ser trabalhado (“mais maneiro”) 36. Sua confecção exigia o uso de compassos, obtidos dos galhos da pitangueira ou do camará, para dar à “cortiça” um padrão regular. Há uma boia diferente das outras - o capitão,apetrecho singular, cabaça, bola de vidro ou isopor, assinalando a ponta da rede, que é a primeira a ser jogada na água, por ocasião de um lanço. Referindo-se a um desses dispositivos, Henrique falava dele como de um companheiro de pescaria - “Esse capitão tem pescado comigo há mais de vinte anos!”. Verifica-se, pois, que os homens pescam junto, não só com seus parceiros, mas, também, com seus instrumentos, muitos dos quais os acompanham por inúmeros anos, rompendo,às vezes, a barreira das gerações, como é o caso dos grandes remos de mestre e das tarrafas, por exemplo. Das rotinas fazia parte, ainda, a manutenção do rancho. Era preciso tê-lo sempre limpo, arrumado e abastecido. Parecíamos estar sempre num barco, pronto para zarpar. A cada tanto era necessário varrer e lavar o piso do rancho, mantendo-o desimpedido para a “traficância”, nesta aguada fina de cimento que nos servia de tombadilho. A semelhança com uma embarcação acentuava-se, ainda mais, com o escrupuloso arranjo dos objetos, como se fosse necessário encontrá-los no escuro e com máxima economia de movimentos. Finalmente, era necessário manter o estoque de lenha, água e comida, refazendo-o na medida dos gastos cotidianos. Quando Henrique caiu doente com erisipela (“isipra”), mal comum entre os pescadores da Zacarias, tive eu mesmo de assegurar todos esses cuidados, além de fazer comida e lavar a roupa, pois, o meu anfitrião ardeu em febre, durante dois dias. Presa do que chamava
isiprafogo, Henrique tiritava, deitado no seu catre. A moléstia produzia-lhe bolhas, nas duas pernas e no braço esquerdo. As dores tornavam-lhe insuportável qualquer movimento do corpo. As compressas de azeite doce e o expediente de amarrar um barbante na altura do bíceps, para obstar a “subida da isipra”, não se revelaram capazes de fazer regredir a “queimação”, os gânglios entumescidos e o inchaço dos pés e da mão. Somente a intervenção de “tia Jona”, rezadeira local, logrou, enfim, deter o avanço da infecção, debelando-a depois de alguns dias. Em nenhum momento Henrique pareceu disposto a admitir que as injeções de antibiótico, aplicadas por Alcina, tivessem parte nessa melhora. Segundo ele, eram necessárias, porém ineficazes sem a reza. Em todos os momentos e circunstâncias, durante minha estadia no rancho, e a propósito dos mais diversos assuntos, Henrique voltava ao parentesco. Mencionando pessoas e acontecimentos, passados ou presentes, parecia fazer questão de desfiar trechos do que se configurou, com o tempo, como um extenso, minucioso e preciso mapa genealógico da Zacarias. Depois da pesca, ou junto dela, era este o seu tema preferido. Era como se nada pudesse ser

36 De determinado momento em diante as bóias de rede passaram a ser feitas também com restos de plásticoou isopor, materiais que costumam "dar na costa".

satisfatoriamente compreendido sem que se tivesse, na cabeça, este quadro. De algum modo, tudo, ou bem partia dele, ou bem retornava a ele - alianças, rivalidades, conflitos, casas, canoas (redes eremos), e tudo o mais que pudesse, porventura, ser objeto de herança e/ou disputa.Tentei, muitas vezes, achar um nome para a experiência constituída nesses quinze dias passados em companhia de Henrique, sobretudo quando pensava em descrevê-la. A expressão lição de pesca não me satisfazia, embora designasse um aspecto notável do processo. Com efeito, posso dizer que através da pessoa de Henrique tinha-se configurado para mim uma amostra do mundo que ele habitava e do qual cuidava com tanta paixão e esmero. Neste sentido, é lícito dizer que tive nele um mestre, cuja competência nos assuntos da pesca lagunar e do povoado, o tempo se encarregaria de revelar como inigualável. Creio, no entanto, vislumbrar, para além desse caráter instrutivo de nossas conversações, uma outra relação, também ela dialógica. Esta, no entanto, sem a assimetria da anterior e baseada numa experiência de envolvimento mútuo e concreto, e que, seguindo Martin Buber, pode chamar-se amizade. Prova disso era o fato de que, ao deixar a Zacarias, em agosto de 1978, trazia comigo, além dos cadernos-de-campo, recheados de informações, muitas das quais levaria anos para digerir, e dos presentes de despedida, todos eles apetrechos de pesca (tarrafas, fuso, fios,compassos, cortiças, chumbos, moldes, agulhas, etc.)... a chave do rancho. E com ela veio não só a garantia de um pouso certo, mas também o penhor de uma relação de reciprocidade e o convite para renová-la, doravante. Se alguma dúvida persistisse neste sentido, estava destinada a se desfazer por ocasião do meu próximo retorno ao povoado. Ao partir, deixara, numa das prateleiras do rancho,uma certa quantia em dinheiro, com a qual pretendia ressarcir meu anfitrião das despesas que lhe havia causado. Quando regressei, próximo do Natal, Henrique estendeu-me o maço de notas - “Sor Mello, aqui tá o dinheiro que o senhor esqueceu da última vez”. Desse modo, qualificava-se uma relação que admitia a troca de presentes, mas não aceitava conviver com nenhuma forma de pagamento.

Continua na próxima semana

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