Gente das Areias - Final

Final. Etnografia: Rem tene verba sequentur 

     Aventura é uma palavra que, vez e outra, tem-se associado à atividade reflexiva.Também os cientistas sociais invocam-na para qualificar suas incursões aos mundos das sociedadese culturas, próprias ou alheias 86.
     Bronislaw K. Malinowski dá aos Argonautas do Pacífico Ocidental , o sub título - “ Um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné - Melanésia ”. Essa referência ao Argos, e à sua tripulação de heróis, para introduzir as façanhas náuticas dos ilhéus trobriandeses, é, ao mesmo tempo alusão a uma aventura paradigmática, no imaginário do Ocidente.
     Os Argonautas , texto inaugural da antropologia moderna, fornece à disciplina seu modelo e missão. Propõe-lhe um objeto - os nativos de determinado lugar; um tema - os empreendimentos aventurosos desses nativos; e um gênero - o relato cujo eixo é a viagem. Não apenas a viagem dos nativos, senão também a do antropólogo, como eles envolvido na busca de bens simbólicos.
     Sob o ascético rótulo de trabalho-de-campo, a viagem etnológica conservou o nexo originário com a aventura, e, assim, manteve o apelo à imaginação, que surge, a cada tanto, nas fórmulas encantatórias da narrativa etnográfica: “Imagine yourself suddenly set down surrounded by all your gear alone on a tropical beach close to a native village... (...) Imagine further that you are a beginner, without previous experience, with nothing to guide you and no one to help you. (...) Imagine yourself then, making your first entry into the village... ” . Se o leitor, porventura, não resistir a esse chamado, poderá encontrar-se, páginas adiante, a bordo de uma masawa 87, com o etnógrafo e toda a tripulação nativa: “Let us imagine that we are sailing along the south coast of New Guinea towards its Eastern end ” 88. Marcel Griaule, etnógrafo francês, notável pelas suas pesquisas entre os dogon , considerava o trabalho-de-campo uma espécie de “continuação, por meios científicos de uma grande tradição de aventura e exploração” 89.
     Esse ponto de vista não surpreende, em se tratando de um viajante experimentado como Griaule 90. Que este, no entanto, tenha sido instigado às viagens por Marcel Mauss é, no

86 Exemplos dessa associação encontram-se em Whitehead (1947), Nunes (1978) e Cardoso(1986). 
87 Grande canoa marítima usada, no circuito do kula , pelos trobriandeses. 
88 Malinowski, 1978 [1922]:4 e 33. 
89 Apud Clifford, 1983:121, referindo Griaule, 1948:199. 

mínimo, curioso, sendo Mauss, notoriamente, homem de gabinete, etnólogo sem trabalho-de-campo, no sentido usual do termo.
     Mais curioso, ainda, quando se considera o modo de falar que tinha o velho mestre, tal como o recorda um de seus alunos:“ Todo o tempo ele tinha falado caminhando, era como se os segredos de raças longínquas, um pedaço dos arquivos da humanidade vos tivessem sido revelados por um expert sob a forma de uma simples conversação, pois ele tinha feito a volta ao mundo sem deixar sua poltrona, identificando-se com os homens através dos livros. Donde o tipo de frase tão comum nele: eu como... eu amaldiçôo... eu sinto, significando de acordo com as circunstâncias: o melanésio de tal ilha come, ou o chefe maori amaldiçoa, ou o índio pueblo sente. ” 91. Esse comportamento bizarro causaria perplexidade, também, a outro de seus alunos, que não sabia nunca se podia ou não dar crédito a esses relatos, feitos na primeira pessoa, por alguém que, manifestamente, não tinha estado lá 92.
     O fato de ter Mauss viajado o mundo por pessoas interpostas em nada diminuiu suas qualidades de observador, como prova o Essai sur le don (1925), cuja interpretação da dádiva resulta mais acurada do que a de seu amigo Malinowski, como este mesmo reconheceria mais tarde 93.
     Marcel Mauss revela-se, desse modo, não só companheiro da viagem alheia, mas, em princípio, adepto da viagem como recurso privilegiado da (in)formação etnográfica. Crê, pois, na aventura, nas suas virtudes como caminho capaz de conduzir à revelação. Neste sentido, a viagem alheia era, para ele, uma realidade, na medida em que realidade é tudo aquilo que excita e estimula o nosso interesse, como sustentava William James, nos seus Principles of Psychology (1890) 94.

90 Griaule, foi, com efeito, um dos etnológos mais viajados, destacando-se, em sua carreira, a missão científica à Etiópia (1928-1929), estimulada por Mauss, e a missão Dakar - Djibouti(1931-1933), além das suas repetidas visitas aos Dogon, na região das falésias de Bandiagara,no Niger. 
91 Dumont, 1972:10. 
92 “(...) não confiava nas pessoas que falavam dos “primitivos” sem jamais ter deixado seu Gabinete. Mauss - por quem eu tinha a maior estima - sentia isso. Ele dizia que, infelizmente,só tinha encontrado alójenos durante uma temporada no Marrocos”. (Dumézil, 1981:89). 
93 Veja-se, a propósito Malinowski, 1973 [1926]:55, Nota 1; e sua Introdução aos Feiticeiros de Dobu (1977), datada de 1931. Se com isso perde em títulos teóricos, Malinowski vê, no entanto, por este mesmo fato, asseguradas suas honras de observador e narrador escrupuloso. 
94 A propósito, veja-se o ensaio de Schutz - “Símbolo, realidade e Sociedade” in Schutz,1974:303. 

     Excitação e estímulo, no entanto, são os ingredientes, por excelência, da aventura, que, no dizer de Georg Simmel é “aquela parte de nossa existência que, embora vinculada às anteriores e posteriores, transcorre, no sentido mais profundo, à margem da continuidade normal dessa existência”, e cujas marcas são “a intensidade e a radicalidade com que nos faz sentir avida” 95.
     Desse ponto de vista, é aventura não só o trabalho-de-campo, que envolve, sempre, algum tipo de viagem. Aventura é, igualmente, cruzar esse “grande deserto a ser atravessado, jamais atravessado” que é, na expressão de Gaston Bachelard, a página em branco 96.
     A etnologia supõe duas viagens, das quais a primeira deve levar-nos ao outro, enquanto a segunda nos impõe trazê-lo para junto de nós, o mais possível vívido, na sua diferença e humanidade, para que possa servir à compreensão e aceitação construtiva dessa mesma humanidade e diferenças em nós. Por isso, talvez haja em cada etnografia um quê de iniciação, como desejava Griaule.
    A primeira dessas viagens é, sem dúvida, importante, na medida que permite ao etnógrafo apropriar-se das coisas necessárias à construção do seu universo etnográfico. Rem tene, aconselha Umberto Eco, verba sequentur. Sem coisas, não há palavras.
     Não menos crucial revela-se, entretanto, a viagem escriturária. Palavras não brotam naturalmente das coisas, ou a página em branco não seria um deserto. Etnografia é a redução das “impressões multitudinárias” à forma singular, por meio da escrita. É a transformação paciente, e não raro penosa, de conversas, encontros, entrevistas, documentos heteróclitos, conflitos, personagens, objetos e enunciados, num gênero de discurso.
     A enunciação desse discurso, porém, não é tão fácil quanto nos faz supor o verba sequentur . A construção do texto tem, igualmente, os seus “hóspedes não convidados”. E uma vez escolhido o caminho, cada passo abre possibilidades e impõe restrições ao seguinte.
     Além disso, por menor que possa ter sido o universo que o trabalho-de-campo procurou abranger, este se revela, potencialmente, infinito, num verdadeiro “jardim dos caminhos que se bifurcam”.
     Quem se vê obrigado a escrever sua etnografia vislumbra as dificuldades desse tipo de viagem, talvez a mais difícil das duas, pela ascese interior que impõe ao etnógrafo. Uma vez iniciada, requer inúmeras renúncias, apenas superadas pelas suas exigências, igualmente avassaladoras.

95 Simmel, 1934:123 e 135. 
96 Bachelard, 1989:109. 

     De certo modo, escrever pressupõe, não só a decisão de enfrentar as vicissitudes desse processo, mas também o desapego do campo, isto é, uma separação, e, em virtude dela, um retorno.
     Com esse distanciamento deve iniciar-se um período de decantação da experiência de campo. Nada há prescrito quanto ao tempo de duração desse interstício, nem tampouco quanto ao modo de atravessá-lo.
     Para mim esse interregno significou o progressivo deslocamento da pesquisa para o plano acadêmico. O envolvimento com o estudo cresceu em proporção inversa à minha presença no campo. De 1987 em diante, minhas idas à Zacarias foram rareando, até cessarem, quase inteiramente, em 1989.
     A decisão de escrever demorou, ainda, até 1991. Com ela encerrava-se um período de latência durante o qual os materiais colhidos no campo visitavam, de forma às vezes fragmentária, desordenada e fugaz, os meus pensamentos, tornando-se, para mim, uma obsessão acalentada, porém inquietante.
     Nas horas de vigília encontrava, por toda a parte, referências ao tema da pesquisa. À noite, sonhava aberturas-de-barra e ouvia dos pescadores ponderações a respeito. Acordado, procurava acrescentar coisas ao elenco das que tinham vindo comigo do campo. Dormindo, tentava solucionar os quebra-cabeças dos quais me ocupava durante o dia. Sentia-me impregnado e, talvez por isso, falava muito sobre o assunto, destilando-o, com diversos interlocutores.
     O resultado foi a banalização da experiência etnográfica vivida no campo. Vieram, então, as dúvidas sobre a relevância das questões e a pertinência das respostas que havia esboçado para elas. E, por que não confessá-lo, a tentação de abandonar todo o projeto.
     Ao longo dessa fase dediquei-me a todo tipo de manobras diversionistas. Dei aulas, participei de órgãos colegiados na universidade, engajei-me em projetos de cooperação científica e desenvolvi pesquisas, sempre sobre outros temas e jamais sem culpa. Sentia-me duas vezes devedor. Uma vez diante de meus compromissos acadêmicos com o doutoramento, a outra diante dos zacarieiros, aos quais havia tomado tempo e atenção e de cuja cálida hospitalidade havia desfrutado, por tantos anos.
     Para o trabalho de escrita, entretanto, a coisa mais importante que sucedeu, nesse ínterim, foi a mudança de ponto de vista. Até um certo momento, continuei a olhar as coisas como se ainda estivesse no campo. Era, ainda, o etnógrafo que via, ao seu redor, o campo, com seus personagens, lugares, rotinas e eventos.
     Na medida em que me fui distanciando, porém, cristalizou-se uma nova perspectiva. Olhava para o setting e via nele o etnógrafo que eu tinha sido, como se fosse um tertius : personagem, como os demais, da experiência passada no terreno. E, se isto nem sempre me dava motivo de satisfação ou orgulho, habilitou-me, no entanto, a enfrentar a escrita.
Admiti, por fim, a necessidade de retomar o ciclo original da aventura antropológica, que começa pela busca (viagem), se realiza no encontro e na admiração, mas cujo coroamento é a narrativa, que não consiste senão em refazer todo o périplo, para si mesmo e para outrem, no papel.
     Ao narrar, entretanto, fui irresistivelmente atraído pela primeira pessoa do plural, menos para solenizar a palavra do autor, do que para fazer justiça às muitas e diversas parcerias que tornaram possível todo esse empreendimento.
     Em seu conjunto, o argumento articulado no decorrer da narrativa etnográfica, estruturou-se em seis partes, constituindo cada uma delas um capítulo, onde se (re)constrói, reflexivamente, “uma forma de humanidade [que] somente se pode convenientemente denominar pelas suas ocupações e, principalmente, pela ocupação central que organiza e regula as restantes” 97 - o mundo da pesca lacustre da praia da Zacarias, em Maricá.
     O ano de 1991 decorreu na elaboração de dois desses capítulos. O primeiro deles, sob o título de A Longa Agonia, configurou-se como uma discussão ampla da natureza, dinâmica e perspectivas dos sistemas lagunares do litoral fluminense, para deter-se, em particular, no de Maricá, cenário mais amplo da pesquisa.
     As mortandades de peixes, sobretudo a grande mortandade, ocorrida em 1975, serviram, não só de ponto de partida, mas também de questão ao capítulo.
     A compreensão dos sistemas lagunares, desde sua formação até o seu estado atual, constituiu-se, sobretudo, a partir dos trabalhos de Alberto Ribeiro Lamego, autoridade consagrada na matéria.
     O contexto ambiental específico do sistema lagunar de Maricá foi esboçado, inicialmente, nas notas dos viajantes do século XIX - Luccock, Wied-Neuwied, Saint-Hilaire e Darwin. Especial atenção mereceram os caminhos através dos quais a região se articulava com os centros urbanos mais próximos - Niterói e Rio de Janeiro, principalmente. Os comentários de Backheuser sobre o conhecido mapa de Vieira Leão (1767) foram, neste sentido, tão valiosos,quanto as indicações dos viajantes.
     A leitura de Marston Bates (1965) foi crucial para o entendimento das determinações inerentes às águas interiores, das quais as lagunas são um caso particular e notório.
     Com ele ocorreu um deslocamento, passando o foco da vida do sistema para a vida no sistema lacustre.

97 Cf. Ortega y Grasset, 1989:89. 

     Quanto ao sistema-Maricá, como tal, a descrição pôde se adensar graças ao exaustivo trabalho da equipe liderada por Lejeune de Oliveira (1955). Com este autor entrou em cena o Canal de Ponta Negra, ainda e sempre, bête noire dos pescadores do Lago Grande, desde sua abertura, nos idos de 1951.
     Este canal, por sua vez, evocava um prospecto político, eminente no Brasil desde o Império e começo do século que, a partir dos anos 30, se torna avassalador - o saneamento . Com ele, porém, o espectro se amplia e incorpora a cidade, lugar nativo da cruzada sanitarista, seu território primordial de experimentação e, finalmente, epicentro de sua ofensiva. Neste sentido, a cidade-moderna surgia, antes de tudo, como cidade saneada, onde o princípio da circulação disciplinada dos fluxos deveria substituir toda e qualquer forma de estagnação, a começar pela das águas. Um ensaio de Didier Gilles (1988) foi esclarecedor quanto a essa diferença entre a cidade moderna e sua rival antiga.
     O segundo capítulo esboçado chamou-se Gente das Areias e compreende uma espécie de tríptico. A primeira parte deste recorreu, novamente, aos viajantes, nos quais se evidenciava a convicção de que as paisagens geram e acalentam, nos homens, determinados sentimentos, sendo pois capazes de plasmar, além de sua natureza física, também sua constituição moral - hábitos, inclinações, temperamento e intelecto. Sob esta ótica foram percebidas as relações entre a paisagem da restinga, assimilada ao deserto, e seus habitantes.
     A parte central do capítulo tratou do processo de construção de um personagem-tipo - o muxuango , caracterizado como o ocupante fortuito, abatido e decadente das restingas fluminenses. Quis, além disso, situar esse empreendimento no contexto do pensamento social brasileiro, onde se travou, sobretudo nas décadas iniciais do século, uma verdadeira querela em torno dos estereótipos sobre as populações do interior brasileiro, opondo às idealizações sentimentais do “caboclismo” as representações críticas dos partidários do saneamento, como Belizário Penna e Monteiro Lobato.
     A terceira parte buscou evidenciar a transformação dos personagens-tipo em tipos concretos, valendo-se do exemplo do muxuango e da trajetória de seu criador, Alberto Ribeiro Lamego. Através dela pôde recuperar os nexos históricos e políticos entre a ideologia do higienismo, a geografia humana e o mandato imperial da Nova República 98, depois Estado Novo, sob a égide de Vargas. Seu objetivo maior e final, no entanto, foi, além de situar o saneamento enquanto política pública voltada para uma autêntica reforma da natureza, mostrar as repercussões desta em Maricá, particularmente no povoado de Zacarias, desde o final dos anos 40.

98 Com a expressão “mandato imperial” procura-se enfeixar a reabilitação, pela Nova República, das realizações do Império, em oposição à República Velha, bem como uma propensão centralizadora e anti-federativa, cuja concretização se dá no Estado Novo. 

     Em 1992 foram escritos os capítulos gêmeos Zacarias Sitiada e A Aldeia dos Irredutíveis . O primeiro deles era uma extensa etnografia das transformações operadas na restinga de Maricá pelo avanço da urbanização. O segundo concentrou-se na descrição circunstanciada do assentamento da Zacarias e seus moradores.
     A gemelaridade dos dois capítulos advinha do fato de servirem a propósitos complementares, pretendendo, um caracterizar as forças conjuradas no assédio ao povoado, e, o outro, o próprio lugar chamado Zacarias, enquanto ator coletivo da resistência ao avanço da cidade.
     O primeiro, Zacarias Sitiada , mostra o esforço desenvolvido para incorporar ao Estado-Nação as populações litorâneas e ribeirinhas, com o artifício das Colônias de Pesca. Ao mesmo tempo, coube-lhe a tarefa de evidenciar a consagração do modo de vida urbano, ao longo de seu processo de expansão, cujos reflexos se fizeram sentir, em Maricá, e portanto na Zacarias, com mais força, a partir dos anos 70. Zacarias Sitiada era, ao mesmo tempo, uma tentativa de restituir, ao drama das mortandades e da urbanização, vivido pelos zacarieiros, o seu contexto sócio-político mais amplo, no qual a cidade foi, aos poucos, afirmando-se como um valor inquestionável, em nome do qual se podia, justificadamente, fazer tabula rasa de qualquer outro modo de vida.
     O segundo, A Aldeia dos Irredutíveis , tratou desse mesmo drama, só que visto de dentro. Para isso teve de caracterizar o povoado. Com essa finalidade, valeu-se de uma narrativa - a saga de Juca Tomás e da família Marins, cuja importância para a Zacarias, tanto sociológica, quanto historicamente, referendam o papel que lhe cabe na etnografia.
     Uma segunda preocupação do capítulo foi a localização da Praia da Zacarias no contexto sócio-espacial que gravita em torno do sistema lagunar. A caracterização do lugar empreendeu-se por meio da descrição exaustiva da casa, do grupo doméstico, do parentesco e do patrimônio, na Zacarias.
     A partir daí, abriu-se o caminho para uma discussão extensa da “luta do tostão contra o milhão”. Esta culmina com o esforço de resgatar a retórica dos motivos invocados pelos zacarieiros, a qual, por sua vez, tem sustentado sua disposição de resistir ao deslocamento do povoado e do seu modo de vida, fundamentado na pesca lacustre.
     Ainda em 1992, concebeu-se o capítulo sobre A Lavoura do Pescador que, juntamente com O Conúbio das Águas, foi concluído, embora parcialmente, no decorrer de 1993. A Lavoura do Pescador consistiu, essencialmente, na busca de um sentido pleno para a expressão nativa. Começou, pois, com a discussão da sorte do pescador, procurando relacionar escassez e abundância do pescado com os fatores de incerteza e/ou previsibilidade inerentes ao ofício da pescaria. Para ilustrar a natureza deste último, no caso da pesca lacustre praticada pelos zacarieiros, no Lago Grande, recorreu à etnografia circunstanciada da pesca-de-galho. Com esta, evidenciou-se um manejo do eco-sistema capaz de conferir ao enunciado nativo toda sua amplitude e plausibilidade. O Conúbio das Águas , por fim, desenvolveu-se em torno de um tipo de evento -as barras-de-emergência, barras sazonais ou “barras nativas”, como são melhor denominadas, pelos próprios pescadores. Tratou-se aí de restabelecer as aberturas-de-barra de acordo com as evidências disponíveis nos relatos dos viajantes, nas descrições dos naturalistas e dos pescadores, nas posturas da legislação provincial, na memória narrativa dos zacarieiros e nas raras ocasiões em que foi possível observar, diretamente, tais acontecimentos.
     As barras nativas revelaram-se, a partir daí, como o dispositivo crítico de todo o sistema de relações, do qual faziam parte os assentamentos pesqueiros da lagoa de Maricá, entre eles Zacarias. Verdadeiros eventos sociais paradigmáticos, essas aberturas-de-barra surgiram, aí, como o princípio estruturante de um modo peculiar de implementação da vida, tal como o conheceram, praticaram e acalentaram muitas gerações de pescadores, não só em Maricá, mas em toda faixa litorânea do Brasil, onde a vida ou a morte de lagunas aprisionadas por restingas depende da sua comunicação com o mar.

* * *

     Se a escrita impôs o recolhimento aos limites estreitos do gabinete, não permitiu, entretanto, isolar-se inteiramente do campo. Determinou sim uma distância, mas, com esse sentido radical do di-stare , pois, encontrando-se embora no seu escritório, o etnógrafo é, intensiva e cotidianamente, obrigado a manter-se em sintonia com o domínio empírico de sua investigação.
     Tal exigência, resulta do esforço de elaboração dos dados que a experiência de campo lhe proporcionou. Não é incomum, nessas circunstâncias, a descoberta de insuficiências no corpus consolidado dos materiais da pesquisa. Lacunas, imprecisões, contradições, ambiguidades, toda elas resultantes de perguntas mal postas ou, simplesmente, não formuladas, por inabilidade ou ignorância, ou, ainda, por que as situações vividas no campo excedem, invariavelmente, as possibilidades de apreensão e entendimento do etnógrafo.
     O trabalho-de-gabinete, conduzido pela escrita é, neste sentido, um impiedoso revelador de carências etnográficas e, assim, reclama o retorno eventual ao campo.
     Trata-se, neste caso, de verdadeiros raids etnográficos. Incursões mais ou menos fulminantes visando a captura de um dado ou esclarecimento indispensável á argumentação cerrada das questões propostas no trabalho. Tais incursões são feitas, diretamente pelo pesquisador, agora orientado pelas necessidades do texto - rem tene , verba sequentur ...
     Às vezes foi possível obter coisas que faltavam pelo telefone, pois, desde 1986, existe um aparelho na Zacarias. Mesmo nessas circunstâncias, porém, foi sempre fundamental a participação de um informante ilustrado - Prelídiano José de Marins, “seu” Mucinho, conhecedor, tanto do terreno, quanto dos temas e das indagações da pesquisa 99.
     Houve um momento nítido de inversão, quando “Mucinho” começou a reunir-secom o etnógrafo, no escritório deste, para repassar dados e discutir sua interpretações, o que, circunstancialmente, gerava novas tarefas de campo e, mais que isso, quebra-cabeças, cuja resolução exigia o concurso de outros informantes.
     Mais de uma surpresa nos esperava, a partir daí. Em diversos casos foi necessário rever informações. O quadro genealógico de Zacarias, por exemplo, sofreu retificações e acréscimos, embora tivesse resultado de nada menos do que quatro censos, o último dos quais comparticipação nativa.
     A etnografia, porém, não submete ao crivo apenas os dados de campo. Desafia, igualmente, os insumos teóricos do escritor. Dessa maneira, impõe-lhe, no decurso do trabalho, a revisão e ampliação de seus instrumentos conceituais. Também aí se manifestam as incompletudes e, com elas, a necessidade do estudo, cujo centro gravitacional é o gabinete.
     Nada pára de mover-se, portanto, embora o levantamento de dados e o estudo tenham de cessar em algum momento. No campo os dias continuam a se suceder, e, com eles, os eventos.Henrique morreu, quando o ano de 1992 declinava. Abriu-se, pois, a sucessão ao rancho . E com ela o sistema de relações da Zacarias voltou a mobilizar-se, em torno de casa e patrimônio. Benjamin (“Beco”), filho de “Lilina”, neto de Juca Tomás, era sério pretendente. Foi, no entanto, a filha de Napoleão José de Marins (“Nizinho”), sobrinha-neta de Henrique e sobrinha-bisneta de Juca Tomás, quem acabou ficando com o rancho, o qual, desse modo, passou, para um ramo colateral da família.
     Para compreender o que isso significa, porém, será necessário consultar a etnografia, sem a qual esta observação permanecerá desprovida de sentido e, de qualquer modo, supérflua.
     Se a antropologia é uma ciência empírica do significado da ação, e se este não pode ser deduzido a prioristicamente, por que depende do contexto particular em que a ação é intentada, então, o que quer que isso (a coisa) signifique, é que o leitor terá de buscar nas páginas subsequentes.

99 Henrique, irmão mais velho de “Mucinho”, não sabia falar ao telefone. Além disso, não iria à casa da sobrinha, filha de seu irmão, onde se encontra instalado o aparelho, por causa, talvez,de sua briga com “Mucinho”, no enterro de Antonica, mãe de ambos.


Fim desta versão preliminar

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