Contabilidade Criativa

A matemática da Amizade 


Crônica de Maurício Pássaro - Três bons amigos. Encontravam-se cada vez menos, ao longo do ano, as famílias, os compromissos, as agendas que não se compatibilizavam. André, Beto e Carlos (o trio ABC). E o lugar do encontro impreterivelmente era o Senza Memoria, ou simplesmente Senza, comida italiana. Os três juntos era coisa rara, geralmente na semana-véspera do Natal ou em ocasiões esporádicas, muito esporádicas. Mais comum era que dois se encontrassem, enquanto ausente o terceiro.

- Ele não veio?

- Não. Reunião em Brasília. Emergência.

Um era gerente-regional de um banco estrangeiro. O outro, empresário bem sucedido no ramo da construção civil, e o terceiro, Senador da República, empresário também, com sucesso, no ramo da política. André, Beto e Carlos, respectivamente.

Certo dia, no Senza, Beto abriu o jogo para André, revelando que passava por um aperto financeiro: perdera três milhões numa aplicação, da noite para o dia. As bolsas despencaram depois que a presidente doou dentaduras numa pequena cidade do Nordeste auferindo mais 10% no ranking das pesquisas eleitorais. André logo se prontificou, pegou o talão de cheques e assinou os três milhões ao amigo Beto.

Um mês depois, não demorou, os amigos Beto e Carlos se encontraram.

- E o André? Não pôde vir...

- Em reunião com advogados. A ex-mulher revelou um esquema na revista, o bicho pegou.

- Hummm...

Carlos foi direto ao assunto: precisava também de três milhões (coincidência) para financiamento da sua campanha pela reeleição, no Senado, negócio que não sai barato.

- Tudo bem, Carlão. Mas, não vai te dar problema na Justiça?

- Que nada! Tudo planejado. Plano A, B e C. No C, é o caso de eu, digamos, ser pego e preso. Já estão programados os advogados, os embargos infringentes, todas as possibilidades e arranjos possíveis estão previstos. Me empresta 3, coloca 1 no bolso e declara a doação ao Imposto de Renda.

- Hummm...

Mais uma eternidade de trinta dias se passou, e agora Carlos e André se encontravam. Embora André fosse do ramo financeiro, não chegava a nadar em dinheiro. Vez por outra se enrolava na contabilidade, errava algumas projeções de juros e perdia dinheiro na aplicação. O chato era quando o dinheiro aplicado e perdido não era seu. E esse era o justamente o caso. Sem pestanejar, Carlos ligou para um assessor que, em trinta minutos, trouxe uma maleta 007 com muitos maços de notas de cem reais.

- Dinheiro em espécie. É mais seguro...

- Eu não me importo, Carlos. Vindo de coração, eu não me importo.

- Hummm...

E assim os três amigos, que raramente estavam juntos, completos, se ajudaram como reza a velha cartilha da amizade. E todos sem saber que um concedia empréstimo ao outro.

Num fim de tarde, voltando para a sua cobertura, na beira da praia, André pega um táxi no centro do Rio e no meio da viagem repara que há uma sacola empanturrada de dinheiro, tudo nota de cem. Uns quinhentos mil, brincando. André lembrou-se de imediato daqueles heróis que encontram carteiras, celulares e bolsas, que saem atrás do dono, em troca de um "obrigado" e da consciência limpa (e de uma reportagem mostrando o seu heroísmo). A situação, porém, era diferente. Não se tratava de uma simples carteira com seus, vá lá, cem ou duzentos merréis, mas pra lá de quinhentos mil! Meio milhão não saem por aí toda hora; ninguém sai, pega um táxi e esquece essa fortuna na poltrona. Certamente era dinheiro sujo. Quem o esqueceu com certeza não prestava. Sendo assim, o melhor que André fazia era levar para si, já que o dono não a merecia e, afinal, como se achar o dono? Sair por aí perguntando "Boa dia, por acaso você esqueceu esse dinheiro no táxi ontem?" Se fossem uns cem ou duzentos reais, ele devolvia, mas...

André levou e contabilizou as notas. Era o dobro do que estimava: um milhão de reais! Pensou em gastar a grana com a secretária, numa ilha grega, um fim-de-semana, seria uma loucura. Mas, lembrou a dívida que tinha com Carlos. A amizade falou mais alto. André ligou para Carlos, comunicou que faria o depósito na conta, e a partir daquela hora passou a dever 2 milhões ao amigo.

Carlos foi tentado a gastar o milhão com um advogado de renome. Lembrou, porém, que era devedor do amigo Beto, em três milhões. Enviou um e-mail dizendo que abatia naquele instante um terço do débito, depositando um milhão na conta.

Beto fez o mesmo com André, saldando um milhão do débito. A dívida dos três entre si era de dois milhões agora.

André, de posse do milhão encontrado no táxi, resolveu saldar parte do seu resíduo de dívida com Carlos: agora devia só um milhão. Carlos, por sua vez, depositou novamente um milhão na conta de Beto, que fez o mesmo na conta de André.

E agora cada um devia ao outro um milhão de reais.

André procurou Carlos, semana seguinte, e avisou que depositara o milhão que faltava, saldando assim a dívida total. Carlos, contente, animou-se a pagar o milhão que também devia a Beto, e assim o fez. E Beto, no impulso, reproduziu o gesto com André, acertando o milhão que faltava.

Resultado: o milhão encontrado no táxi serviu para saldar três dívidas de três milhões entre três amigos, bons amigos.

Conclusão: pare de ser pessimista e seja criativo.

mauriciopassaro.blogspot.com.br





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