O PACTO - Na encruzilhada do Poder

Maurício Pássaro - Era a sua terceira tentativa. Depois de se candidatar por três vezes, achava que agora, sim, o povo, mais experiente, votaria nele em peso para ocupar a presidência do país.

Ao fim do dia, porém, as pesquisas de boca de urna davam por certa a sua derrota, a terceira seguida. Voltar ao seu antigo emprego, de quando era jovem, não dava mais, teria que passar por algum curso de atualização, as máquinas com que trabalhava nem mais existiam. Além, disso, o sindicato lhe pagava bem: carteira assinada, proteção trabalhista, degrau para o início de uma gloriosa carreira política – órgão financeiramente sólido como uma grande empresa de renome.

Levantou-se da mesa do bar, à francesa, fingiu que ia ao banheiro, saiu de fininho pela porta lateral. Passava na rua, pelos transeuntes, e os olhava com um ar de rebaixamento, como um jogador descendo à segunda divisão. Faltavam treze minutos para a meia-noite, quando lhe deu uma vontade estranha de virar à direita (simbólica e literalmente), entrou por um beco escuro e saiu numa encruzilhada. A noite estava deserta.

Andava cabisbaixo, pensando no que afinal dera errado na campanha, e tal, quando de repente avistou no meio-fio uma garrafa de cachaça. Sentou-se ao lado, afastou o despacho com o pé – “Fizeram piquenique aqui e esqueceram a garrafa...” – e sorveu esticados goles com aquela esquisita vontade.

Ele olha o relógio de pulso: meia-noite em ponto, segunda-feira de lua cheia, dia das almas. Cães uivavam nos quintais distantes. Resolve levantar e seguir viagem de destino aleatório. Mas, se sente estranho. Ouve um atordoante zunido no meio da cabeça, como uma serra elétrica.

- Êpa!

Fechou os olhos. E quando os abriu, reparou que um homem alto, de terno e chapéu brancos, usando óculos escuros, fumava charuto encostado a um poste próximo. O sujeito jogou a guimba na rua, ajeitou o chapéu, a calça, o terno, e veio caminhando em sua direção, passos lentos, movimentos calculados. Ele, com medo, perguntou:

- Quem é você?

O sujeito abriu sorriso de encostar a boca nas orelhas, fazendo com que um dente de ouro brilhasse à luz do luar.

- Não sabe quem sou eu? Mas, você me chamou. Se alguém me chama eu venho. E nessa época de eleição... Não tenho mais sossego.

- Se está vendendo dossiê... Agora não adianta, a eleição passou e eu perdi...

- Não é dossiê. Mas, sobre as próximas eleições. Você falou que faria o diabo para vencer as eleições. Pois, bem, ele já está feito. Sou eu, que falo contigo.

Ele arregala os olhos, a embriaguez é suspensa, fica sóbrio como um bloco de gelo. Repara que os olhos do diabo são azuis; o tinhoso é branco e louro, traços indiscutíveis de um anglo-saxão.

- Eu sabia! A elite branca! Você só poderia ser louro e de olhos azuis...!

- É. O meu perfil tradicional, chifres, patas de bode e cauda, é coisa do passado. Estamos no século XXI. Agora, meu slogan é “Diabinho Paz & Amor”. A princípio, detestei a chamada. Mas, depois vi que tinha tudo a ver.

Conversaram um bom tempo na encruzilhada. O diabo disse-lhe que não se espantasse com o novo formato do mal, que se cansara de tentar seduzir os homens com aquela péssima apresentação. O cheiro de enxofre era terrível, nem ele aguentava mais. Teve de contratar um marqueteiro, que tudo providenciou, a plástica, os transplantes, os discursos, a produção geral, a fim de melhorar a sua imagem perante a população.

- Você precisa de um assessor, meu caro. Eu serei o seu assessor e lhe indicarei um marqueteiro.

- Mas, companheiro demônio, isso não é coisa da burguesia?

- Não. É coisa da Democracia, o governo do Demo. E já vou lhe adiantando. Corte esse cabelo horrível, faça já a barba e vista um terno. Acredite! O marketing deu jeito até em mim...!

- Mas, companheiro...

- Confie em mim. Farei de você um herói do povo, um mito, o garoto pobre que virou presidente, que comeu o pão que o diabo amassou, quer dizer... Mas, venceu. Essa foi a última garrafa de cachaça que você bebeu. A partir de agora só Romanée Conti.

Começou a se interessar pelas ideias diabólicas. O maldito, afinal, não era tão feio assim como pintavam. Ao contrário. Trazia mensagem de união, unir pelo Brasil, juntar-se com os partidos que sempre atacara, aceitar financiamento de grandes empresas e banqueiros, mudando o tom da crítica.

- Mas, diabo... E o socialismo? E a justiça social?

- Sim, o socialismo! O governo dos sócios! Nós seremos sócios. Faremos a distribuição de renda tão sonhada. O erro histórico de seu partido foi imaginar que poderia socializar a renda dos ricos e dos poderosos. Fala sério! Isso não será possível, pois alguém precisa financiar o seu governo revolucionário. Fazer uma campanha sai muito caro.

- Mas, de onde virá o dinheiro, então?

- Da classe média. Você pode viver sem os votos dela. Mas, não pode viver sem o voto dos pobres, e muito menos sem uma ajuda dos ricos. Estes financiarão sua campanha e a dos seus sucessores. Precisamos mudar, de uma sadia alternância do poder. As elites estão no poder há quinhentos anos. Dividindo isso por quatro... O seu partido precisa ficar pelo menos uns cento e vinte e cinco mandatos no poder, para compensar, igualar. Distribua dinheiro para os pobres e, na hora da eleição, espalhe que o adversário cortará o benefício, se eleito.

- Mas, diabo... Se eu distribuir dinheiro... Será compra de voto, crime eleitoral.

- Dê um nome para o benefício, o seu partido é bom nisso. Chame-o de Bolsa Família. Aproveite que já existe o Bolsa Escola. Antes, porém, inicie um movimento altruísta qualquer, e marque presença no cenário mundial como um estadista. Vou simplesmente fazer de você “o cara”.

- Já sei: o Fome Nunca Mais!

- Pode ser melhorado. Fome Zero soa melhor. Quem será contra? Quem cometerá o pecado de ir contra quem deseja matar a fome dos irmãozinhos no mundo? “Zero” é também uma palavra da língua inglesa, universal. Veja, por exemplo, o chamado Plano Real. “Real” é “Real” no mundo inteiro, facilita e divulgação e favorece sua aceitação. Um nome que reflete a realidade, o realismo, aquele plano de governo que pôde ser possível. Um plano realista, não o “ideal”, mas real.

- Esse negócio de URV... Eu desconfiava que tinha um dedo seu nisso...

- Obrigado. Mas, nesse caso, só ajudei inspirando o nome, o resto veio mesmo da cabeça do governo. Inclusive, pare de falar mal desse plano, porque você se beneficiará dele, em breve, vai fazer bonito na economia.

E ficaram os dois ali, na encruzilhada, sob o frio do luar, acertando os detalhes para o futuro.

- Eu já cansei de tentar as eleições e não vencer...

- Eu sei, cansa mesmo. Eu passei por isso. Mas, agora vai ganhar. É a sua vez de chegar ao poder, eu consentirei, sou o rei deste mundo. Desde que obedeça às minhas ordens. Quem não obedece às minhas ordens morre de repente, desaparece, um acidente de automóvel ou de avião, assalto seguido de homicídio...

- Ô, diabo! Cansei também de ser pobre. Quero o fim da minha miséria.

- Relaxe. A sua miséria terá um fim. E o fim da miséria é só o começo...

Ele indagou ao diabo se não seria arriscado compor parcerias com políticos reconhecidamente corruptos. O capeta deu uma estrondosa gargalhada. E disse:

- Amigo, o povo não tem memória. Ademais, a justiça é lenta e a impunidade vigora para quem pode. Quando você for montar o esquema, reserve um orçamento generoso, no caixa-dois, para bons advogados. E se, por um acaso, uma fatalidade remota do destino, um ministro seu for pego e preso, ficará pouco tempo na cadeia, depois entra em prisão domiciliar e vai pra casa, penar suas dores, pagar seus pecados. Não se preocupe, pois a História o absolverá. Há! Há! Há! Há...!

Com os braços cruzados e a mão direita (ato falho) coçando o queixo – “Hummm...” – ele calmamente considera a orientação do diabo. Era isso. O que importava eram os fins. “Os fins justificam os meios” – repetia para si, tentando lembrar de quem era a famosa frase, mas certo de que provinha de alguém importante na história da humanidade. A “causa” revolucionária estava acima de tudo. Até uma remuneração mensal, complementar e oficiosa, a parlamentares do Congresso, era válida, pois facilitaria a aprovação dos projetos de seu governo.

Disse ao diabo que o plano era bom, mas havia um problema: a imprensa burguesa. A serviço do capital internacional, a imprensa não perdoaria, se descobrisse o plano, a causa. Tinha, por isso, ideias de fechar jornais, revistas, emissoras de TV e grampear a Internet, lançar o “marco zero”. O tinhoso respondeu:

- Calma, rapaz, vença a tentação! Isso vai ser numa fase posterior...

Gargalhou novamente, respirou e complementou a resposta:

- Se descobrirem, apenas repita que você não sabia de nada. Isso vem dando certo há dois mil anos. Um sujeito chamado Pilatos disse a mesma coisa, ao lavar as mãos, diante de um julgamento sumário e ilegítimo, uma condenação antecipada. O que importa é que o réu foi a júri popular – você sabe, a Democracia, o meu governo. Foi condenado pela maioria do povo. Não havendo conselhos populares na época, o imperador perguntou diretamente à população, como num plebiscito. A maioria optou pela execução do réu. Você sabe: a voz do povo é a voz de Deus. E olhe que nem havia urna eletrônica naquela época...!

O candidato derrotado estava contente, esperançoso. Quando o diabo lhe apareceu, na hora sentiu medo, mas a esperança venceu o medo. Começou a fazer planos para o futuro. Meteu a mão dentro do casaco verde-oliva e tirou de lá dois charutos. Deu um para o diabo. Comemoraram o pacto.

- É cubano?

- Legítimo.





Comentários

  1. Explique Evo Morales. Tem negócios com o pata rachada? Faz-me rir!

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